
a trama do aranha-gente
NA LONJURA DO TEMPO, quando bicho era gente e gente era bicho, as noites e os dias andavam a passos arrastados, num sem fim de chegar. Fazia um silêncio... O povo vivia cansado de escutar nada. Era um desassossego de boca fechada e ouvido desocupado. É que ainda não havia histórias para contar.
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Lá nesse quando, existia um ser chamado Ananse,o aranha-gente. Ele passava horas a fio pendurado, balançando-se na sua teia, tecendo pensamentos.
Pensava sobre como seria lembrado depois que morresse. Ah, adoraria realizar grandes feitos e estar entre os heróis que um dia puseram seus pés – ou patas – por esta terra. Mas não sabia o que fazer.
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Uma vez, na escuridão estrelada, aconteceu dele dormir e sonhar com Nyame, o Deus do Céu, ao lado de um grande baú de madeira que, talhado com desenhos pasmosos de bonitos, guardava todas as histórias. Antes mesmo de acordar, já estava decidido: traria o magnífico baú para a Terra. Era este o grande feito que procurava: “as histórias de Ananse” – repetia em alto e bom som. Seria muito digno e honroso ser lembrado todas as noites quando o povo se reunisse em volta do fogo para contá-las.
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Desceu ao chão e deu de espichar, encolher e alongar suas oito patas. Amarrou uma folha a um galho, um galho a um cipó, um cipó a outra folha, a outra folha a um tronco e assim foi... Ananse tecia e subia, subia e tecia uma teia transparente e fina – mas forte feito aço – que ligava cá em baixo com lá em cima. Quando deu por si, havia chegado à morada de Nyame. Foi levado ao senhor do firmamento e, após fazer as reverências necessárias, dobrando cada uma de suas oito patas, disse:
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– Ó, grandioso Deus do Céu, desejo comprar seu baú de histórias e levá-lo para a Terra.
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Nyame fez uma pausa, olhou bem para a miudeza do aranha-gente e nem tentou segurar o riso. Mãos na barriga, soltou uma gargalhada que mudou a direção dos ventos:
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– Ah-ah-ah! Uma criatura pequena feito você não conseguirá pagar meu preço!
Ananse, sem se deixar abater, permaneceu quieto, sperando a risada afrouxar.
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– Ah, como é bom rir. Muito bem. Meu preço é que você me traga – vivos – três seres jamais capturados. Wowa, as abelhas das ferroadas terríveis; Aboatia, um anão da floresta; e Nanka, a serpente do veneno paralisante. Saiba que todos os que tentaram, morreram. Se realizar essa façanha, lhe entregarei meu baú.Caso contrário... não haverá caso contrário, porque se não conseguir, significa que terá morrido pelo caminho.
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Ananse era pequeno, mas sua astúcia, enorme. Como ninguém, ele conhecia a fraqueza dos grandes. Por isso, prometeu a Nyame que, dali a três dias, pagaria o preço pedido. Reverenciou o Deus e desceu pela teia já elucubrando as ideias. Tramou cada passo do plano. Arrematou cada etapa, sem deixar ponto sem nó. E na manhã seguinte, mal tinha o sol raiado, iniciou sua jornada.
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Andou pela mata em direção à colmeia, carregando uma enorme cabaça. Sabia como as Wowa podiam ficar zangadas e danar-se de ferroar. Por isso, quanto mais alto o zumbido ficava, mais vagarosos eram os seus passos. Todo cheio de gentilezas, saudou-as:
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– Vocês são muitas mesmo! Impressionante! Ouvi dizer que chegam a duzentas!
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– Duzzzzzzentas, não! Somos trezzzzzentas! – corrigiram as abelhas lá de dentro da colmeia.
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– Trezentas? Olhando assim, me parecem duzentas mesmo.
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– Trezzzzzentas! – zumbiu uma das operárias.
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– Duzentas – Ananse insistiu, tranquilo.
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Dali a pouco, foi um zum-zum-zum, um fuzuê, uma quizumba só! As abelhas começaram a contar e todas gritavam os números a que haviam chegado:
– trezzzzzentas e dezzzzzoito! Não, somos trezzzzzentas e dozzzzze!
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Ananse levantou uma das patas e, voz empostada, disse:
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– Senhoras, por favor! Estamos todos zonzos. O que me dizem de resolvermos essa questão de uma vez por todas? Se me permitem, posso contá-las. Basta que voem uma a uma para dentro da minha cabaça.
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As abelhas acharam que, para o bem geral da colmeia, em prol da organização após a zumbaria, seria prudente seguir a proposta do aranha-gente. E assim foi: primeiro, as operárias; depois, a operária-chefe; e, finalmente, a rainha.
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– E então? Quantas somos, afinal? – perguntaram as Wowa.
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– Trezentas e treze! – respondeu ele, tampando a cabaça.
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A despeito do zumbido e do sacudido que as abelhas faziam lá dentro, Ananse colocou a cabaça em sua teia e descansou pendurado como gostava de ficar.
No que o sol se levantou, o aranha-gente seguiu com a trama. Era a vez de Aboatia, um ser da floresta tão pequeno, mas tão pequeno, que é quase impossível vê-lo. Parado, nem olho pisca, parece raiz ou toco de árvore. Capturá-lo, dificílimo! Pé de vento, só se vê o rastro de poeira.
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Ananse, sabido de tudo isso e mais, preparou-se. Cortou um cacho de bananas maduras, de encher os olhos e dar água na boca. Saiu arrastando o cacho até o meio da floresta e o largou lá, dizendo bem alto:
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– Ai, que canseira! Carregar esse enorme cacho de bananas doces feito mel me deixou exausto. Vou deixá-lo aqui e volto amanhã para pegar.
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Fingimento puro. Deu meia-volta e escondeu-se nas folhas de bananeira. Dali a pouco, corre-e-para-corre-e-para: um Aboatia.
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– Hum, bananas! Minha comida preferida! Vou comer antes que o amanhã chegue logo – disse, lambendo os beiços.
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Comeu uma, duas, três. Quatro, cinco, seis...Empanturrou-se de bananas! Tanto que se sentou, deitou e rolou, a barriga estufada e pesada de gemer, coitado. Mal podia se mexer.
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Ananse saiu do seu esconderijo, assobiando tranquilo. O Aboatia, quando viu, tentou correr, mas pisou na casca de uma das bananas e se estabacou, de barriga pra cima. Ananse o pegou pelo pescoço e o embrulhou numa folha de bananeira. Voltou para casa com o enroladinho de Aboatia e pendurou em sua teia.
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Quando o sol despontou, Ananse espreguiçou as oito patas e seguiu margeando o rio onde mergulhava Nanka, a serpente do veneno paralisante.
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– Ó, Nanka! Sua beleza é de impressionar. Como são bonitos os desenhos da sua pele cintilante. Você deve mesmo ser a maior criatura que existe.
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– Sim, sou belíssima e longuíssima, a maior de todas.
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– Claro! – respondeu Ananse. – Deve ser até maior do que aquele bambu ali no chão.
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Prontamente, a serpente rastejou e esticou-se toda ao largo do bambu. Ananse tomou distância, olhava e fazia que avaliava, com cara de dúvida.
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– Então, sou ou não a maior?
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– Sabe o que é? Seu pescoço e sua cauda não param de se mexer. Posso amarrá-los por uns segundos? Assim, já já resolveremos a questão.
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Ágeis e rápidas, as patas de Ananse amarraram a serpente ao bambu. Nanka ficou paralisada, como se tivesse provado do próprio veneno. Logo estava ela lá, pendurada na teia.
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Ananse teceu um casulo de fios ao redor da cabaça das Wowa, de Aboatia e Nanka. Com a ponta do fio, fez uma teia prateada e comprida em direção aos céus. Subiu com os troféus nas costas, até chegar à morada de Nyame. Colocou, gentilmente, aos pés do Deus, os três seres jamais antes capturados.
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Nyame arregalou os olhos e, em voz alta, disse:
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– Grandiosos são aqueles que realizam assombrosas proezas. De hoje em diante, meu baú e suas histórias pertencerão a você, Ananse.
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O aranha-gente agradeceu, fez as devidas reverências e desceu, baú no lombo.
Quando o abriu, costurou, cuidadoso, o fio dourado das histórias numa grande teia, capaz de sustentar uma aldeia, um povo, uma nação, toda a Terra. É por isso que, no coração da África ou em qualquer parte do mundo, quando se conta uma história, Ananse, o aranha-gente, é lembrado. É por isso que, desde a lonjura do tempo, quando bicho era gente e gente era bicho, temos histórias para contar.
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Conto tradicional da África Ocidental.
Reconto do livro: uma história e uma história e uma história - contos dos contos da tradição oral, de Ana Gibson e Juliana Franklin. Rio de Janeiro: Folio Digital, 2019.